Finalmente, após uma luta de vários meses, a minha carrinha chegou ao lugar onde - espero - vai renascer, após um processo que se adivinha longo, penoso e muito trabalhoso.
Não vou repetir aquilo que já foi dito na minha apresentação (ver
aqui), por isso vou aproveitar esta abertura de tópico para falar um pouco sobre a própria carrinha e aquilo que ela fez sentir a mim e à minha companheira, no dia em que a conhecemos e no dia em que já debaixo da nossa asa nos sentámos nela e começámos a preparar o seu renascimento.
A carrinha esteve parada cerca de 4 anos debaixo de uma árvore e encostada a um morro de terra, pelo que no dia em que a fomos conhecer olhar para ela foi como olhar para um cadáver: estava morta, vazia, despida de dignidade. Era um objecto vulgar que tinha ultrapassado a sua utilidade para o seu dono e que agora o deixava (e deixava-se) desfazer esquecida a um canto.
Não gostei do que vi. Não gostámos, pois éramos dois a olhar. Não decidimos logo. Disse-se que se ía pensar. Mas no momento que nos preparávamos para virar costas e muito provavelmente nunca mais lhe pôr a vista em cima houve
algo que me fez olhar para trás. E vi uma faísca, um brilho, um desejo de vida reluzir por um momento naquela carcaça moribunda. Disse naquele mesmo momento que era minha. Apertaram-se mãos e chegou-se a acordo.
Demorou 6 longos meses para aquela carrinha chegar a casa, tempo em que tudo o que podia ter corrido mal correu. Perdi o meu avô materno. Fui pai. Envelheci anos em dias e ganhei uma nova vida quando conheci a nova vida que ajudei a pôr no mundo.
Entretanto tive de lidar com as suspeitas de um proprietário que desconfiava de uma proposta sincera e que me dizia que preferia mandar o carro para a sucata do que entregá-lo sob condições que não fossem as dele. Foi um braço de ferro. Joguei sujo quando tive de o fazer e virei o jogo nas alturas certas e até nas erradas, para não perder aquele sonho. No final, ganhei.
Finalmente, no dia 9 de Novembro, Terça-feira, fomos buscá-la. Tive de a desatolar de um lodaçal barrento onde ficava preso até aos tornozelos. Foi arrastada e empurrada, à força e à bruta, para fora daquela sepultura prematura e não se lhe ouviu um queixume, ao contrário do reboque que gemeu e bufou do esforço e debaixo da carga que recebeu. Achei justo. Choviam canivetes quando subiu para o reboque e na minha mão caiu a declaração de compra e venda. Era minha finalmente. Depois de uma viagem curta, debaixo de uma chuva intensa, que martelava os vidros dos carros, chegou à oficina de cara lavada, com muito do lixo que a cobria tendo ficado para trás.
Três dias depois, voltei a ir vê-la. Conhecê-la, por dentro e por fora. Ver as surpresas que me aguardavam, boas e más. Não encontrei o mesmo carro. Já não era o cadáver que me aguardava. Encontrei um carro sujo e cansado, severamente mal tratado, mas com um desejo de viver a pulsar nele, a olhar para a estrada que se estende a poucos metros de distância e a desejá-la.
Abri a porta do condutor e sentei-me no banco rasgado e velho. Toquei no volante baço e ressequido e passei os dedos pelo tabliê rachado e empoeirado. E senti força. Senti o respirar de uma fera que jaz adormecida e que abre um olho para nos encarar, para avisar que dorme mas vigia. Que espera.
É chegada altura de devolver a velha fera à estrada.